quarta-feira, 31 de outubro de 2007
Saudade
Sorri
E a saudade atormentar
Os teus dias tristonhos vazios
Sorri quando tudo terminar
Quando nada mais restar
Do teu sonho encantador
Sorri quando o sol perder a luz
E sentires uma cruz
Nos teus ombros cansados doridos
Sorri vai mentindo a sua dor
E ao notar que tu sorris
Todo mundo irá supor
Que és feliz
de Charles Chaplin
segunda-feira, 29 de outubro de 2007
Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.
de Alexandre O'Neill
sexta-feira, 26 de outubro de 2007
A um ausente
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.
Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o acto sem continuação, o acto em si,
o acto que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?
Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.
Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste
de Carlos Drummont de Andrade
quinta-feira, 25 de outubro de 2007
Está lá a Pátria que nos pariu:
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
(...)
Ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!
(...)
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...
E ainda:
País engravatado todo o ano
e a assoar-se à gravata por engano.
de Alexandre O'Neill
quarta-feira, 24 de outubro de 2007
Narciso
Em outra versão da lenda, Narciso contemplava a própria imagem para recordar os traços da irmã gêmea, morta tragicamente. Foi, no entanto, a versão tradicional, reproduzida no essencial por Ovídio em Metamorfoses, que se transmitiu à cultura ocidental por intermédio dos autores renascentistas.
terça-feira, 23 de outubro de 2007
Grande
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
de Fernando Pessoasegunda-feira, 22 de outubro de 2007
Lágrima
E com mais penas me levanto
Já me ficou no meu peito
O jeito de te querer tanto
Tenho por meu desespero
Dentro de mim o castigo
Eu digo que não te quero
E de noite sonho contigo
Se considero que um dia hei-de morrer
No desespero que tenho de te não ver
Estendo o meu xaile no chão
E deixo-me adormecer
Se eu soubesse que morrendo
Tu me havias de chorar
Por uma lágrima tua
Que alegria me deixaria mata
de Amália Rodrigues
sexta-feira, 19 de outubro de 2007
Isto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está de pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.Sentir?
Sinta quem lê!
de Fernando Pessoa
quinta-feira, 18 de outubro de 2007
Morte e Transfiguração
Lanceram-nos a esperança, mas dão outra.
Essa em que a dor nos faz criar raízes,
Árvore e fruto duma seiva nova.
Dos abismos da ira levantamos
As vozes, os protestos e as trombetas.
Só nos ouvimos quando nos calamos
E em vez de arautos nos tornamos poetas.
Cantores das coisas que nos doem, magos
Da nossa angústia, frémito das águas
Onde nos debruçamos, onde nós,
Narcisos do que é grande e impossível,
Nos transformamos por amor da voz
Enquanto a imagem nos parece inútil.
de José Carlos Ary dos Santos
quarta-feira, 17 de outubro de 2007
Vaidade
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!
Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!
Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a Terra anda curvada!
E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho... E não sou nada!...
de Florbela Espanca
terça-feira, 16 de outubro de 2007
Deveras interessante
segunda-feira, 15 de outubro de 2007
A Criação de Ganesha
sexta-feira, 12 de outubro de 2007
A raposa e o corvo
in BRAGA, Teófilo. Contos tradicionais do povo português
quinta-feira, 11 de outubro de 2007
Porquê
Abro os olhos e espreguiço-me
Percebo que tenho de me levantar e dou um grito...
Não!
Fecho os olhos e a realidade cai sobre mim
Abro os olhos lacrimejados e percebo o que aconteceu
É inevitável, tenho de me levantar ...
Não!
Lá me levanto a custo, tudo é intuitivo
Comida para o gato, escolher a roupa,
o duche, o pequeno almoço e sair ...
Não!
O trânsito, o planeamento do dia
As pessoas mal humoradas nos carros que passam,
Chegar ao trabalho que é menos que os sonhos ...
Não!
Comum a todos os momentos do meu dia
É a pergunta que me assola a vida
Porquê?
de Blue
quarta-feira, 10 de outubro de 2007
Soneto 35
Não chores mais o erro cometido;
Na fonte, há lodo; a rosa tem espinho;
O sol no eclipse é sol obscurecido;
Na flor também o inseto faz seu ninho;
Erram todos, eu mesmo errei já tanto,
Que te sobram razões de compensar
Com essas faltas minhas tudo quanto
Não terás tu somente a resgatar;
Os sentidos traíram-te, e meu senso
De parte adversa é mais teu defensor,
Se contra mim te excuso, e me convenço
Na batalha do ódio com o amor:
Vítima e cúmplice do criminoso,
Dou-me ao ladrão amado e amoroso.
de William Shakespeare
terça-feira, 9 de outubro de 2007
segunda-feira, 8 de outubro de 2007
Coração sem imagens
Sem ti para que me servem
as imagens?
Preciso habituar-me
a substituir-te
pelo vento,
que está em toda a parte
e cuja direcção
é igualmente passageira
e verídica.
Preciso habituar-me ao eco dos teus passos
numa casa deserta,
ao trémulo vigor de todos os teus gestos
invisíveis,
à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve
a não ser eu.
Serei feliz sem as imagens.
As imagens não dão
felicidade a ninguém.
Era mais difícil perder-te,
e, no entanto, perdi-te.
Era mais difícil inventar-te,
e eu te inventei.
Posso passar sem as imagens
assim como posso
passar sem ti.
E hei-de ser feliz ainda que
isso não seja ser feliz.
de Raúl de Carvalho
quinta-feira, 4 de outubro de 2007
A Abelha
A colorida flor, e pousa, quase
Sem diferença dela
À vista que não olha,
Não mudou desde Cecrops.
Só quem vive
Uma vida com ser que se conhece
Envelhece, distinto Da espécie de que vive.
Ela é a mesma que outra que não ela.
Só nós — ó tempo, ó alma, ó vida, ó morte! —
Mortalmente compramos
Ter mais vida que a vida.
de Ricardo Reis
quarta-feira, 3 de outubro de 2007
Pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.
de Pablo Neruda
terça-feira, 2 de outubro de 2007
Desaparecimento
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura por ti.
de Alexandre O'Neill
segunda-feira, 1 de outubro de 2007
O último Amor
os pés molhados no escuro chão.
Era o último amor e não sabia
esconder o rosto em tanta solidão.
Era o último amor. Quem advinha
o sabor pela escuridão?
Quem oferece frutos nessa neve?
Quem rasga com ternura o que foi verão?
Era o último amor, o mais perfeito
fulgor do que viveu sem as palavras.
Era o último amor, perfil desfeito
entre lumes e vozes passadas.
Era o último amor e não sabia
que os pés à terra nua oferecia.
de Luís Filipe Castro Mendes