terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Home and Company


Acordo ...

Acordo de noite subitamente.
E o meu relógio ocupa a noite toda.
Não sinto a Natureza lá fora,
O meu quarto é uma coisa escura com paredes vagamente brancas.
Lá fora há um sossego como se nada existisse.
Só o relógio prossegue o seu ruído.
E esta pequena coisa de engrenagens que está em cima da minha mesa
Abafa toda a existência da terra e do céu...
Quase que me perco a pensar o que isto significa,
Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca,
Porque a única coisa que o meu relógio simboliza ou significa
É a curiosa sensação de encher a noite enorme
Com a sua pequenez...

de Fernando Pessoa

O mesmo do anterior


Mais Haicai

Voa o papel
Junto às flores de ameixeira
–Primavera dos deuses.

de Arakida Moritake

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Natureza


Lágrimas Ocultas

Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era querida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...
E a minha triste boca dolorida,
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!
E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...
E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!
de Florbela Espanca

Calor


Small

Ah, lua cheia!
Nem mesmo um rosto bonito
Entre os presentes...

de Matsuo Bashô

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Montanhas


O Caminho estreito

Também esta cabana de colmo
se há-de transformar
em casa de bonecas

Que glória
as folhas verdes as folhas novas
sob a luz do sol

Nem o picanço
tocará esta ermida
suspensa entre as árvores de verão

Ficou plantado o arrozal
quando me despedi
do salgueiro

O berço da poesia
os cantos dos plantadores de arroz
no longínquo norte

Mãos que hoje plantam arroz
outrora ágeis desenhos
imprimiam como uma pedra

Das cerejeiras em flor
ao pinheiro de dois troncos:
três meses

Criadoras de bichos da seda
as suas roupas
aroma de antiga inocência

Na frescura
me estendo
como no meu leito

Quietude:
as cigarras escutam
o canto das rochas

O cálido dia:
o rio Mogami
deita-o ao mar

Cabanas dos pescadores:
apanhando a frescura do entardecer
estendidos sobre as portas

O ninhos de «misagos»
sobre uma rocha no mar:
jurariam as ondas não lhes tocar

O Sétimo Mês
a noite do sexto dia
não me parece a de sempre

Penetro no aroma do arrozal
à minha direita
a cólera do mar

O sol arde
sem compaixão
Mas o vento é de Outono

Que nome delicado
O vento entre os pinheiros
os trevos os juncos

Se hei-de morrer no caminho
que seja
entre os campos de trevo

Hoje o orvalho
apagará o teu nome
do meu chapéu

Toda a noite
escutei
o vento de Outono na montanha


de Matsuo Bashô

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Bósforo


Dinastia Tang

Onde tenho a minha casa?
Um pardieiro numa encosta
Dela guardo os Ancestrais.
O terreiro: cerca um covil de raposa
E diante da porta há um ninho de pega.

in «Poemas Anónimos - Turcos, Mongóis, Chineses e Incertos», por Gil de carvalho

Cold and harm


Inverno

Declínio —
um dente acusa um grão de areia
nas algas secas

Intempérie —
infiltra-se o vento
até na minha alma

Tão esguia a gata
Não da falta de cevada
mas do amor

Um vento glacial sopra
Os olhos dos gatos
pestanejam

As mãos no lume
... e na parede
a sombra do meu amigo

Primeira neve —
basta um floco
para vergar a folha do junquilho

Kisagata —
Seishi adormeceu à chuva
Húmidas mimosas

Se parados pelas nuvens
dois patos selvagens
Dizem-se adeus

Tendo adoecido em viagem
em sonhos vagueio agora
na planície deserta


de Matsuo Bashô

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Japanese Crow


Outono

Outono:
velhos parecem até
os pássaros e as chuvas

Trevos roxos
ondulam sem deixarem cair
uma só gota de orvalho

Cai uma castanha...
Calam-se de súbito os insectos
entre as ervas

Crepúsculo:
as ervas parecem seguir
os rebanhos que recolhem

Vento de Outono —
até as pedras do Monte Assama
voam

Ah este caminho
que já ninguém percorre
a não ser o crepúsculo

Admirável aquele
cuja vida é um contínuo
relâmpago

Na escuridão do mar
brancos
gritos de gaivotas

No outono nos separamos
como duas conchas
da amêijoa

Outono —
empoleirado num ramo seco
um corvo


de Matsuo Bashô

A beautiful picture


Borboletas

Aos casais... - ante a espessa ramaria verde, e rendada ao sol deste verão - livres, felizes, cheias de alegria as borboletas pelos céus se vão... Despreocupadas... pela floração se perdem, numa inquieta correria... - Onde foram?... e em que lugar estão? Já não se vê o olhar que as perseguia... Mas... de repente, voltam pelo espaço, - trêmulas e amorosas de cansaço, asas roxas e azuis coo violetas... E invejoso pensei, vendo-as pelo ar: - quem me dera nascer, viver e amar, como aqueles casais de borboletas
de Desconhecido

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Muitas


Tulips

(...)
The walls, also, seem to be warming themselves. The tulips should be behind bars like dangerous animals; They are opening like the mouth of some great African cat, And I am aware of my heart: it opens and closes Its bowl of red blooms out of sheer love of me. The water I taste is warm and salt, like the sea, And comes from a country far away as health.
de Sylvia Plath

Cascata


Verão

Preso na cascata
um instante:
o verão

Frescura:
os pés no muro
ao dormir a sesta

Com relutância
emerge e abelha
do coração da peónia

Visto à luz do sol
é apenas mais um insecto
o pirilampo

Narciso e biombo
um o outro ilumina
branco no branco

Silêncio:
as cigarras escutam
o canto entre as rochas

Sensação de vazio
Ao despedir-me colhi
uma espiga de trigo

As cigarras cantam
sem saberem que é a morte
que as escuta

Ervas do estio
Eis o resta
do sonho dos guerreiros

No pôr do sol
entre as papoilas brancas
as faces curtidas dos pescadores


de Matsuo Bashô

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Orvalho


Primavera

Abrindo de par em par
as portas do palácio:
A PRIMAVERA

Apesar da névoa
mesmo assim é belo
o Monte Fuji

Não esqueças nunca
o gosto solitário
do orvalho


Brisa ligeira
A sombra da glicínia
estremece

Uma rã mergulha
no velho tanque...
O ruído da água

De que árvore em flor
não sei —
Mas que perfume

A cada sopro do vento
muda de folha
a borboleta no salgueiro

A uma papoila
deixa as asas a borboleta
como recordação

Flores de cerejeira no céu escuro
e entre elas a melancolia
quase a florir

Extingue-se o dia
mas não o canto
da cotovia

Lua cheia:
para repousar os olhos
uma nuvem de tempos a tempos

Flores queimadas pela geada
Os grãos caídos
semeiam a tristeza

Depressa se vai a primavera
Choram os pássaros e há lágrimas
nos olhos dos peixes


de Matsuo Bashô

Caminhos Antigos


Um bom conselho

"Não siga as pegadas dos antigos, procure o que eles procuravam."

Matsuo Bashô

Another Home


E o contrário?!

"A ambição é uma desculpa esfarrapada por não se ser suficientemente preguiçoso ."


Milan Kundera

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Recordar


De um inglês

Perguntei a um sábio,

a diferença que havia

entre amor e amizade,

ele me disse essa verdade...

O Amor é mais sensível,

a Amizade mais segura.

O Amor nos dá asas,

a Amizade o chão.

No Amor há mais carinho,

na Amizade compreensão.

O Amor é plantado

e com carinho cultivado,

a Amizade vem faceira,

e com troca de alegria e tristeza,

torna-se uma grande e querida

companheira. Mas quando o Amor é sincero

ele vem com um grande amigo,

e quando a Amizade é concreta,

ela é cheia de amor e carinho.

Quando se tem um amigo

ou uma grande paixão,

ambos sentimentos coexistem

dentro do seu coração.

de William Shakespeare

O retorno


Transforma-se o amador na cousa amada

Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si sómente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim co'a alma minha se conforma,

Está no pensamento como ideia;
[E] o vivo e puro amor de que sou feito,
Como matéria simples busca a forma.


Luís de Camões